*Paulo Henrique M. de Jesus
A Constituição de 1988 manteve um perfil de policiamento essencialmente autoritário e fundamentado na repressão ao “inimigo interno”. Também ampliou o debate sobre os direitos humanos e o crime passou a ser visto em uma perspectiva de cunho social. Assim, houve a elaboração de filosofias, programas e práticas de policiamento mais próximas da sociedade com destaque para o policiamento comunitário ou de proximidade, inspirado tanto em experiências estrangeiras bem-sucedidas quanto na premissa constitucional que, em seu artigo 144, coloca a segurança pública como responsabilidade de todos.
Para a filosofia de polícia comunitária, a segurança pública passou a ser vista como uma meta a ser atingida a partir de iniciativas cooperativas, associativas, interativas e harmônicas de toda a coletividade. A sociedade avaliará a eficiência e os resultados práticos das iniciativas policiais, estabelecendo uma cooperação entre polícia e sociedade com o intuito de pensarem e aplicarem políticas públicas de segurança mais eficientes e focadas na melhoria da percepção de segurança por parte da comunidade e na redução dos índices de criminalidade e violência focando nas especificidades da localidade onde tal filosofia é aplicada.
O êxito da prática de policiamento comunitário requer boa vontade por parte do poder público, mas também da sociedade, tampouco depende exclusivamente da mudança da legislação como se, por um toque de mágica, tal mudança fosse suficiente para levar o policial a mudar sua atitude de distanciamento e buscasse se aproximar da comunidade à qual, em tese, ele serve. Ele perpassa pela reestruturação tanto da maneira de se tratar a criminalidade quanto da própria forma de atuação da Polícia Militar, uma vez que o policiamento ostensivo e repressivo por si só não é suficiente para a redução das taxas de criminalidade e promoção do aumento da sensação de segurança da comunidade. É necessária a mudança radical na postura e na forma como a Polícia Militar compreende a si mesma, seu trabalho e sua atuação dentro de um Estado Democrático de Direito como garantidora dos direitos individuais dos cidadãos e coletivos da sociedade.
O sucesso da implantação do policiamento comunitário depende do constante comprometimento por parte daqueles que detêm o comando das forças policiais em relação a busca e preservação de um aparato que vise sempre ao desenvolvimento de práticas preventivas às ações criminosas; elaboração permanente de políticas de incentivo e valorização dos profissionais de segurança pública; suporte incessante por parte das autoridades, meios de difusão de informação; participação efetiva da comunidade. Os obstáculos responsáveis pelo fracasso do policiamento comunitário são: restrição e má distribuição de investimentos em políticas públicas de segurança; manutenção do uso de práticas violentas por parte da Polícia Militar no combate à criminalidade e preservação da ordem e segurança pública; as constantes pressões da sociedade por resoluções imediatas e violentas por parte do Estado no tocante à redução da criminalidade e preservação da ordem pública; as práticas corporativistas dos agentes de segurança pública que temem uma maior responsabilização dos seus atos e de sua eficiência perante a sociedade; a bipartição policial que estabelece fronteiras nem sempre muito claras entre policiamento preventivo, ostensivo e investigativo; existência de critérios pouco claros de avaliação do rendimento e da eficiência policial. Outro problema a ser destacado é o risco desta prática tornar-se mais um tipo de policiamento especializado entre tantos outros, desconectado das demais formas de policiamento e possivelmente até considerado de menor importância tanto por parte das instituições quanto dos próprios policiais, acarretando a aplicação menor de investimentos, tecnologia e pessoal capacitado para o desempenho da função.
No Maranhão, mais especificamente na capital São Luís, a filosofia de policiamento comunitário demorou a ser percebida como uma possibilidade de gerenciamento da segurança pública. Até o início dos anos 2000 as iniciativas governamentais, especialmente em relação às comunidades periféricas, reproduziam as velhas práticas de policiamento ostensivo essencialmente violento e excludente que, via de regra, insistiam na criminalização dessas áreas e seus moradores. Por outro lado, em diversos bairros da capital, algumas iniciativas praticadas já refletiam o desejo da própria comunidade de discutir sobre questões relacionadas à segurança pública e outras demandas como: saúde, educação, saneamento básico, transporte público, etc. Estas são anteriores a qualquer filosofia mais institucionalizada de policiamento comunitário, mas guardam relação com essa filosofia porque muitos conselhos surgiram como parte da luta destas iniciativas precursoras. Foi com o propósito de debater e reivindicar junto às autoridades governamentais soluções para os problemas anteriormente citados que houve a criação em 2005 do Conselho Comunitário de Defesa Social do Polo Coroadinho (CONCDESPC) cuja atuação serve de exemplo para a aplicação de uma tentativa embrionária de policiamento comunitário em São Luís.
Tal experiência reflete o esforço tímido e incipiente da comunidade e do governo estadual em desenvolver estratégias baseadas na filosofia de policiamento comunitário. Assim, o 1º Batalhão de Polícia Militar (1º BPM) adotou medidas visando aumentar a aproximação entre a Polícia Militar e a comunidade do Polo Coroadinho e intensificar o policiamento preventivo e repressivo. Entretanto, essa experiência comunitária de policiamento se confronta com outras experiências nem tão comunitárias desenvolvidas na mesma época no Polo Coroadinho, em outras áreas da Grande São Luís, especialmente periféricas, e dos demais municípios maranhenses, como foi o caso da “Lei Seca”, que determinava o fechamento de estabelecimentos que vendiam bebidas alcoólicas às 23h dos estabelecimentos localizados em áreas residenciais e às 2:30h daqueles localizados em áreas não residenciais, se caracterizando muito mais como uma espécie de toque de recolher. Nota-se uma prática ainda hesitante por parte do Estado que ao mesmo tempo busca uma aproximação com a comunidade, mas exerce rigoroso e violento controle sobre essa mesma comunidade por considerá-la antro de criminosos em potencial.
A partir de 2008 ou 2009 houve a criação dos Conselhos de Segurança Cidadã. Sua estrutura era atrelada ao Estado e com participação da comunidade nas iniciativas de projetos sociais nas áreas de saúde, educação, lazer, infraestrutura e segurança pública. Visto que o governo Jackson Lago teve curta duração, os Conselhos de Segurança Cidadã não tiveram tempo hábil de mostrar a que vieram, pois foram desativados pela governadora Roseana Sarney, através do secretário de Segurança Pública, Aluísio Mendes, sucedido por Marcos Affonso Júnior, que optaram por outra prática de policiamento implantada a partir de 2013, baseado nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro, chamado Unidade de Segurança Cidadã (USC). Na prática apenas refletiam a reprodução de uma política de governo baseada em práticas de policiamento preventivo, ostensivo e repressivo que já havia sido adotado na Grande São Luís entre os anos de 2005 e 2007, experimentados na implantação de batalhões de Polícia Militar e na intensificação do controle ostensivo sobre as comunidades periféricas de São Luís com altos índices de violência. Por outro lado, buscava na prática dos Conselhos de Segurança Cidadã o desenvolvimento de ações comunitárias de educação e geração de emprego e renda, mas que demonstravam resultados tímidos. Em 2015, o Governador Flávio Dino criou o “Pacto pela Paz” através da Lei Nº 10.387, de 21 de dezembro de 2015, que em seu Art. 3º determinava a criação dos Conselhos Comunitários pela Paz (CPP) que não representou necessariamente uma ruptura com a prática anterior das Unidades de Segurança Cidadã (USC), mas houve a diminuição da atenção especial que era dada pelo governo anterior a elas.
Apesar das tentativas, mais dissimuladas que sérias, a maneira como essa filosofia de aproximação entre polícia e comunidade ocorre é alvo de críticas por parte de diversos especialistas, sobretudo em relação à participação da comunidade nas questões pertinentes à segurança pública. A comunidade se limita a fornecer informações básicas ou cobrar por parte da polícia mais ostensividade no combate à criminalidade local, reforçando as práticas tradicionais de policiamento truculento e violento. Remontando-se ao fato de a Constituição de 1988 não ter alterado a estrutura fundamental das polícias e da própria maneira de se pensar e efetivar políticas de segurança pública no Brasil.
Cheguei a participar de algumas reuniões e estas são invariavelmente conduzidas pela Polícia Militar, que fica encarregada de definir seu progresso e até mesmo a própria pauta, uma vez que as demandas policiais da comunidade são toleradas desde que se refiram ao aumento da criminalidade. Entretanto, quando ocorre alguma queixa referente à violência ou ineficiência do trabalho policial, ela é imediatamente repelida pelo policial militar responsável pela condução da reunião e o que deveria ser uma excelente oportunidade de aproximação entre polícia e comunidade acaba se tornando uma grande troca de farpas e acusações.
Portanto, a filosofia de policiamento comunitário ainda é no Brasil, especialmente no Maranhão, uma experiência embrionária e em fase lenta de construção tendo como um dos principais obstáculos para a sua efetivação a manutenção ainda de comportamentos policiais herdados da ditadura civil-militar.
*Doutorando e mestre em História; pesquisador em História Social do Crime, Polícia, Aparatos de Policiamento e Segurança Pública