terça-feira, 2 dezembro, 2025

Movimentos como o chamado redpill ganharam espaço no ambiente digital ao se apresentarem como um suposto “despertar” para a realidade das relações de gênero. Essa promessa de revelação — envolta em jargões pseudocientíficos e discursos de auto aperfeiçoamento masculino — opera, de fato, como uma estrutura de amplificação do ressentimento e de naturalização da violência. A aparência de sinceridade brutal, tão valorizada por esses grupos, funciona como porta de entrada para uma pedagogia do ódio que, longe de existir apenas no plano simbólico, mobiliza práticas concretas de agressão.

O caso recente envolvendo Thiago Schutz, o “Calvo do Campari”, não é um episódio isolado, mas evidência material de que a retórica misógina defendida por esses influenciadores possui efeitos diretos. Schutz, figura central dentro desse ecossistema, tem construído sua imagem pública a partir de vídeos em que apresenta mulheres como adversárias a serem controladas e desumanizadas. Essa performance, que mistura deboche, provocação e suposta autenticidade masculina, ganhou contornos dramáticos quando ele foi preso em flagrante por violência doméstica após a companheira fugir para a rua com marcas visíveis de agressão. Segundo o boletim de ocorrência, a vítima relatou tapas, chutes e tentativa de forçá-la a manter relação sexual; um dos vídeos gravados durante a agressão mostra Schutz segurando a mulher enquanto repete, em tom de desafio, que ela pode “chamar a polícia”.

Esse episódio ilumina a lógica de transbordamento entre discurso e ação própria desse movimento. O que se produz ali extrapola os limites da opinião hostil ou retórica inflamada e se converte em doutrina que incentiva o exercício de poder masculino como forma de afirmação.  E nessa doutrina a violência se torna extensão coerente de uma narrativa baseada na ideia de que autonomia feminina representa ameaça e que conter essa ameaça seria não apenas legítimo, mas necessário. Não por acaso, muitos seguidores desses influenciadores tratam situações como a de Schutz não como crime, mas como confirmação de seu “papel de macho” — um indício claro da circulação de valores que banalizam agressão e subordinam mulheres a padrões ultrapassados de obediência.

A força desses discursos está na maneira como transformam frustrações individuais em explicações totalizantes. Ao simplificar relações humanas em esquemas binários — dominador e dominada, vencedor e “manipulada”, viril e “desvalorizada” — o movimento oferece conforto emocional travestido de teoria. Jovens e adolescentes, especialmente, se tornam público vulnerável: em meio à instabilidade afetiva, encontram nos conteúdos redpill uma narrativa pronta que lhes absolve de responsabilidades e oferece inimigos concretos. O algoritmo amplifica o dano: vídeos curtos e sensacionalistas são a porta de entrada para conteúdos mais radicais, criando um ciclo de reforço que normaliza posturas agressivas.

Esse fenômeno ganha ainda mais gravidade quando observado no contexto brasileiro, onde índices de feminicídio e violência doméstica permanecem altos. O movimento redpill atualiza o machismo estrutural, traduzindo velhas hierarquias patriarcais em linguagem de internet. A promessa de “recuperar o lugar do homem”, repetida à exaustão, se alimenta do incômodo de parte dos indivíduos frente aos avanços de igualdade de gênero. É nessa fricção que discursos de ódio encontram terreno fértil: apresentam autonomia feminina como ameaça à ordem e convertem ressentimento em identidade. No caso de Schutz, a violência registrada em vídeo não é ruptura, mas consequência lógica de sua trajetória pública.

Outro ponto preocupante é o modo como esses grupos constroem mecanismos de blindagem simbólica. A crítica externa é tratada como perseguição; evidências são reinterpretadas como manipulação; e a própria vítima se torna alvo de ataques, desqualificada por homens que sequer a conhecem. Essa inversão — típica de ambientes radicalizados — cria um sistema de sentidos no qual a violência é justificável e a responsabilização, vista como injustiça. A liberação provisória de Schutz após audiência de custódia reforçou esse ciclo entre seus seguidores, que celebraram o ocorrido como se fosse vitória contra um suposto “sistema feminista”.

No plano social, a disseminação dessas narrativas produz impactos concretos. Multiplicam-se relatos de mulheres hostilizadas por seguidores de influenciadores; ampliam-se comportamentos de assédio; normaliza-se a instrumentalização de técnicas de manipulação emocional e isolamento afetivo. A fronteira entre agressão verbal, intimidação psicológica e violência física se torna mais tênue à medida que esses conteúdos circulam de forma massiva, com aura de humor ou irreverência que encobre suas consequências.

Diante disso, a resposta não pode se limitar ao julgamento moral de influenciadores, por mais necessários que eles sejam. O problema está no ecossistema que transforma misoginia em produto de consumo, violência em performance e ressentimento em estilo de vida. A responsabilização jurídica — especialmente em casos com provas robustas, como o de Schutz — precisa caminhar junto a políticas de educação digital, regulação de plataformas e fortalecimento de redes de proteção a mulheres. Também é urgente disputar narrativas, expondo as manipulações e contradições que sustentam essa masculinidade que promete força, mas nasce da insegurança; que fala em coragem, mas se expressa pela brutalidade; que se vende como libertação, mas aprisiona homens em versões empobrecidas de si mesmos.

Paulo Henrique Matos de Jesus; Doutor em História; pesquisador em História Social do Crime, Aparatos de Policiamento e Segurança Pública; Analista Técnico do Observatório da Criminalidade da Associação dos Delegados do Estado do Maranhão (ADEPOL-MA)

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