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O Ethos policial: entre o ser humano e o “super-homem”

Por: Paulo Henrique Matos de Jesus

A ideia de pesquisar as lutas dos policiais militares pelo direito de ter direitos nasceu a partir da conversa que tivemos com alguns integrantes da polícia militar do Maranhão que em algum momento foram nossos alunos ou, até mesmo, colegas (de sala de aula, de corredores da universidade, mestrado, ofício da docência).
Em uma dessas conversas um deles disse assim: “o policial não veio de Marte. A polícia é feita de gente e não de extraterrestres. Gente que tem educação básica, curso superior e até mestrado e doutorado. Aqui (batendo no peito fardado) também tem vida inteligente.”
Entretanto, são indivíduos adestrados pelo Estado a se auto anularem enquanto tais para vestir uma indumentária total de super-homem, a ponto de não se verem mais como simples mortais e a sociedade civil nem sempre enxergá-los como humanos, e, sim, como policiais, super-homens, de forma que o substantivo policial é adjetivado, tanto positiva quanto negativamente pelos julgamentos individuais ou coletivos.
Para a frustração dos governos, da Polícia e da sociedade civil, os policiais são seres humanos de carne e osso, que lidam com a vida e a morte, possuem necessidades fisiológicas, físicas, psicológicas, afetivas, financeiras e outras mais. São vítimas e autores de preconceitos, não são mais nem menos frágeis ou fortes que o restante da humanidade. São apenas indivíduos que foram induzidos pelo Estado e pela sociedade civil a crer que pudessem alcançar a condição de super-homens e uma quase imortalidade. Por outro lado, as pressões que vêm de todos os lados, o constante risco de morte, as frustrações do ofício, o esgotamento físico e mental e outros dramas, levam o policial a reclamar de suas condições de ser humano e cidadão.
Porém, os governantes são normalmente impelidos pelos seus sequazes a agir com o propósito de calar as vozes dos que se manifestam contra a narrativa do super-homem. Não é à toa que vigiam e punem pública ou veladamente os policiais que exigem sua condição de ser humano e cidadão como meio de intimidar as intenções daqueles que ousarem pleitear insurgirem-se, ao mesmo tempo em que reforçam a narrativa segundo a qual existe um abismo profundo entre o policial e o restante da sociedade.

Referência

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva, 2010.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. De Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

“Treino difícil, combate fácil”: a importância das técnicas na formação profissional

Longe de mim estabelecer alguma relação, por menor que seja, entre a docência e o trabalho policial. Entretanto, preciso fazê-lo (guardadas as devidas proporções) para promover essa análise.

Tanto o exercício da docência quanto o trabalho policial são submetidos a técnicas que norteiam seus respectivos praticantes.

O docente que frequentou o curso de Licenciatura estuda Didática, Psicologia da Educação, Estrutura e Funcionamento do ensino e realiza um estágio supervisionado.

O policial durante o Curso de Formação de Soldados (CFSd) também aprende os procedimentos técnicos do seu ofício. O currículo do CFSd da PMMA é constituído por 38 disciplinas, dentre elas: Teoria Geral da Segurança Pública, disciplinas que envolvem conhecimento jurídico como, direito penal e Processual Penal, Direitos Humanos e disciplinas que envolvem Técnica Policial, como, Técnicas de Abordagem Policial, Policiamento Comunitário, Defesa Pessoal e tiro Policial. Os alunos são constantemente submetidos a avaliações teóricas e práticas. Além das disciplinas técnicas da atividade policial e Direito, a grade curricular conta com disciplinas como resgate e prontosocorrismo, libras e de direitos humanos, além de princípios de cidadania com base na filosofia de respeito à vida, à integridade física e à dignidade da pessoa humana. (fonte: www.pm.ma.gov.br).

Não nos interessam as minúcias dessas formações (docente e policial), suas falhas e equívocos​. O que importa é que elas são o pré-requisito para o exercício da profissão. Subentende-se que ao passar pelo curso ambos terão plenas condições de encarar uma sala de aula (no caso do docente) e uma operação de policiamento preventivo/ostensivo (no caso do PM).

Partindo desse princípio afirmo que o docente tem a obrigação de aplicar as ferramentas técnicas aprendidas e, supostamente, apreendidas por ele ao longo da sua formação e de sua carreira. O docente deve sempre ponderar qual a melhor estratégia de abordagem de um determinado eixo temático, sempre com base nos pressupostos acadêmicos do seu ofício. Na compreensão dos processos cognitivos de aprendizagem ele deverá aplicar o conhecimento adquirido em Psicologia da Educação. Na Didática, ele busca a melhor maneira de promover a transposição. Sempre entendendo que sua ação docente não pode ser improvisada. Ao contrário, deve ser planejada, passo a passo com o propósito de alcançar um objetivo pré-estabelecido.

É possível professores que utilizam a arte do improviso serem bem sucedidos em suas ações pedagógicas? Sim. Mas, uma hora o improviso não funciona mais. É possível, a despeito das técnicas pedagógicas, o trabalho docente ser eficiente e de boa qualidade? Tenho dúvidas. As técnicas existem para prever toda a intencionalidade do fazer pedagógico ou docente. Seguindo-as a certeza de sucesso é garantida.

Da mesma maneira é o trabalho policial. Todas as técnicas aprendidas e, supostamente, apreendidas durante o curso se forem bem aplicadas, garantem o sucesso de toda e qualquer ação.

É pouco provável e inadmissível alguém que em sua formação tenha sido instruído nos princípios do respeito à vida, à integridade física e à dignidade humana não consiga gerenciar o risco de trocar tiros de fuzil em plena via pública com quem quer que seja sob o risco de atingir um inocente. Ou ainda, não consiga mensurar os danos causados pelo uso inadequado do que convencionalmente é conhecido como “uso progressivo da força” contra alguém notadamente em surto psicótico.

Não sou profundo conhecedor de procedimentos técnicos de operações de combate urbano. Mas, da mesma maneira que o docente tem a obrigação de mediar conflitos em sala de aula de forma que os danos sejam nulos, o policial tem o dever, em primeiro lugar, pensar em proteger e depois em exercitar a “guerra” e matar. Para tanto, é primordial o pleno domínio da utilização e aplicação de técnicas, tecnologias, armas, munições e equipamentos não-letais em atuações policiais. Assim, o policial deve utilizar todos os recursos disponíveis e possíveis para preservar a vida de todos os envolvidos numa ocorrência policial, antes do uso da força letal. Em tempo. Os equipamentos não-letais são aqueles que, mesmo não classificados como armas, foram desenvolvidos com a finalidade de preservar vidas, durante atuação policial ou militar, inclusive os Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s).

Ora, se não for dessa maneira para que servem as técnicas, os cursos de formação e capacitação? Se o fim da atividade docente é o aluno, o fim da atividade policial é a preservação da vida e da sociedade.

 

Paulo Henrique Matos de Jesus é doutorando, mestre e graduado em História; pesquisador em História Social do Crime, Polícia, Aparatos de Policiamento e Segurança Pública.