Por  Abdelaziz Santos*

O protocolo de instalação de um hotel de 70 quartos no Centro Histórico de São Luís do Maranhão celebrado entre o Governo do Estado e o grupo português Vila Galé envolve sérias questões técnicas, urbanas e, sobretudo humanas, como se verá a seguir:
Questões técnicas:
– trata-se de um prédio tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) recentemente ocupado pela Defensoria Pública do Estado do Maranhão, composto por dois edifícios (números 201 e 241) na rua da Estrela (Praia Grande), que sofreu intervenções em 1987 e 2004, ou seja: o imóvel tem todo um histórico de requalificação de pleno conhecimento por parte do órgão preservacionista federal em São Luís – IPHAN.
– o bem arquitetônico em questão possui aproximadamente 3 mil m2 (três pavimentos e mirante), Na primeira intervenção aprovada pelo IPHAN o uso proposto foi uma Pousada-Restaurante-Escola, um centro de treinamento para mão de obra voltada ao turismo da cidade., quer dizer, um uso absolutamente coerente com o contexto da Praia Grande.
– as necessidades de conforto térmico e acústico certamente exigirão novas esquadrias, bem como equipamentos de climatização que, conforme experiência do próprio IPHAN na área, podem-se tornar itens de difícil adaptação às regras de manutenção da originalidade do prédio, assim como as atuais exigências de acessibilidade que devem incluir rampas, elevadores e banheiros acessíveis.
Questões urbanas:
– a primeira questão é a adequação à Lei Municipal de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo que, desatualizada, não prevê uma densidade populacional para aquele trecho da cidade e apresenta uma listagem de uso do solo de 1992. A adição de um hotel com 70 quartos pode aumentar a densidade populacional na área, causando impactos na infraestrutura local, como o fornecimento de energia e água (que já é restritivo na região, com problemas de abastecimento por todos conhecidos), impacto na coleta de lixo e no tratamento de esgotos.
– outra questão é a capacidade do Projeto Reviver de lidar com o aumento da demanda proposta de transporte e logística de abastecimento do empreendimento, tendo em vista que o Plano Municipal de Mobilidade do Centro Histórico nunca foi implantado. Na questão da mobilidade e acessibilidade o Centro Histórico de São Luís é uma área densamente construída, com ruas estreitas e tráfego intenso no entorno da Praia Grande, área por sua vez fechada ao trânsito de veículos. A instalação de um hotel deve considerar os impactos na mobilidade local: como será o acesso ao futuro hotel, que pelas características anunciadas vai atrair um público usuário do transporte particular, proibido naquele trecho, com poucas ofertas de estacionamento em sua área envoltória imediata. O hóspede que se espera atrair não vai utilizar o transporte público (no Terminal da Praia Grande) e chegar ao hotel a pé, carregando as próprias malas. O aumento do tráfego de veículos e a demanda por estacionamento, além da acessibilidade para as pessoas com mobilidade reduzida são questões difíceis de resolver.
– atualmente a Praia Grande possui um perfil de empreendimentos comerciais (formais e informais) e de hospedagem já instalados. Portanto, é necessário avaliar os possíveis impactos socioeconômicos como o aumento dos preços imobiliários e a gentrificação, que podem afetar a população local e a diversidade social da área, a partir da gradual expulsão de antigos moradores e tradicionais comerciantes. A construção de um resort deve atrair muitas lojas, restaurantes e negócios voltados para turistas. Isso pode levar a uma comercialização excessiva no centro histórico, com predominância de estabelecimentos turísticos e uma perda da autenticidade dos negócios locais tradicionais. A cultura local e os modos de vida tradicionais podem ser substituídos por uma atmosfera turística padronizada.

Questões humanas:
– densidade populacional: resorts geralmente atraem grande número de visitantes e turistas. Isso pode resultar em um aumento significativo na densidade populacional da área, causando congestionamento, tráfego intenso e sobrecarga das infraestruturas existentes. As ruas estreitas e antigas não foram projetadas para lidar com esse novo influxo de pessoas, o que vai causar transtornos e perturbações na vida diária dos moradores locais, e danos ao meio ambiente. Isto sem falar da segurança pública, questão ainda pendente de resolução na Praia Grande, o que traz preocupação diária à comunidade que ali vive e mora.
Isso tudo é pouco, muito pouco, considerando o que vem a seguir: exatamente na quadra da qual se fala tem o tradicional restaurante Cafofo da Tia Dica e outros bares que se juntam com o não menos tradicional restaurante-bar da Faustina e sua praça respectiva – palco de capoeira, tambor de crioula e outras manifestações de nossa cultura popular; o Centro Matroá e o Centro de Capoeira Acapuz, espaços dedicados à Capoeira (Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade), há quase 20 anos e palco de formação de inúmeros mestres e contramestres da capoeira, a Livraria Sebo, o Tapete Criações, a loja de artesanato Mamãe Decora. Nas calçadas da quadra, um número razoável de ambulantes que há anos mantém suas famílias com o produto de suas vendas naquele local. Todo esse pessoal são os verdadeiros guardiães do patrimônio arquitetônico da área.
Pois bem, quando se fala em São Luís Patrimônio Cultural Mundial costuma-se pensar no maravilhoso conjunto arquitetônico construído pelos portugueses no século XVII, o que é, na verdade, algo majestoso. Mas, além dele e do patrimônio imaterial que viceja por aquelas paragens, por si só riqueza inigualável (Bumba-Meu-Boi, Tambor de Crioula, Capoeira, Reggae etc.), esquece-se do maior e mais importante patrimônio do Centro Histórico que é o PATRIMÔNIO HUMANO, ou seja, as pessoas que ali vivem, moram e trabalham, naturais guardiães desse tão valioso patrimônio material e imaterial.
Esses grupos de pessoas, donos de bares, restaurantes, artistas, produtores culturais, pequenos comerciantes, ambulantes e outros estão simplesmente apavorados com a ideia da vinda desse aparato hoteleiro, porque sabem que perderão seus lugares de trabalho que lhe produzem a renda necessária para o sustento de suas famílias.
O argumento de que a rede hoteleira oferecerá trabalho e renda choca-se frontalmente com o trabalho e renda dos que perderão uma coisa e outra. Torço para que o Governo desista da iniciativa da edificação da Vila Galé na Praia Grande, já que estaria comprando uma briga desnecessária. Além das pessoas diretamente envolvidas na possível tragédia apontada, produtores e artistas conectados a esse público certamente levantar-se-ão contra o projeto.
A desistência da ideia seria um gesto de profunda reverência do Governador Brandão à cultura popular de nossa cidade. Afinal de contas, a cidade dispõe de outros espaços para recepcionar a Vila Galé.

 

* Abdelaziz Santos foi Secretário de Fazenda do Município de São Luís-Ma e Secretário de Planejamento do Estado do Maranhão (ambos nos governos de Jackson Lago). Atualmente atua como profissional independente de Saúde, bem-estar e educação física; e é consultor econômico.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião de Os Analistas