Paulo Henrique Matos de Jesus*, especial para Os Analistas
Nos últimos dias, São Luís mergulhou num circuito de pânico em que áudios e vídeos atribuídos a facções passaram a pautar deslocamentos, horários de aula e o humor coletivo. O enredo combina dois planos: acontecimentos violentos efetivamente registrados — tentativas de homicídio, tiroteios pontuais e prisões — e uma camada ruidosa de mensagens não verificadas que amplificou a sensação de colapso. Em entrevista, o secretário estadual de Segurança, Maurício Martins, reconheceu que houve ocorrências criminais na Grande Ilha, mas atribuiu a apreensão generalizada a uma onda de fake news, negando ataques a escolas e prometendo investigar e responsabilizar quem difundiu boatos. Ao mesmo tempo, escolas e faculdades públicas e particulares suspenderam aulas de forma preventiva, mesmo sem registro de incidentes dentro das unidades — decisões que, somadas ao rumor, reforçaram a leitura de “cidade em risco”. Esses pontos constam em reportagens locais publicadas em 23 e 24 de outubro de 2025.
Do ponto de vista sociológico, o que se vê é a engrenagem clássica dos pânicos morais: atores e sinais são convertidos em ameaça desproporcional, e a amplificação midiática desloca o foco do diagnóstico para respostas de “tolerância zero”. Em ecossistemas digitais, cascatas informacionais aceleram a verossimilhança: quanto mais um áudio circula, mais plausível ele parece — sobretudo onde a comunicação oficial falha em ritmo e nitidez. O rumor, aqui, não é simples ruído: ele substitui a informação sob incerteza e se ancora em memórias locais de violência, atualizando imaginários urbanos do perigo que a imprensa popular consolidou historicamente nos faits divers. Forma-se uma economia moral do medo que reordena trajetos, fecha comércios e corrói confiança.
Esse regime afetivo tem efeitos políticos. O medo disciplina e legitima exceções: operações ostensivas sem lastro de prestação de contas, abordagens generalizadas, decisões administrativas que “pacificam” por suspensão do cotidiano — um terreno em que práticas de exceção tendem a se normalizar. Em São Luís, a circulação de materiais “assinados” por facções também performa controle territorial: afirma presenças, demarca fronteiras e impõe condutas, mesmo quando o conteúdo é falso, porque opera no registro da reputação violenta.
Há, ainda, a face estrutural: falhas do Estado ajudam a sustentar o ciclo. Comunicação de risco tardia ou desencontrada abre espaço para o boato; a governança de dados é opaca (faltam painéis públicos com ocorrências, rotas críticas e status dos serviços); e a resposta privilegia teatro policial em vez de inteligência e rastreabilidade das redes de difusão. Em territórios com iluminação precária, transporte irregular e serviços rarefeitos, a noite vira domínio da incerteza e o áudio anônimo encontra a brecha por onde governa a rotina (Caldeira; Soares).
O quadro que emerge dos fatos checados é este: houve crimes relevantes nos bairros da Grande Ilha, resultando em 7 mortes e 10 feridos; não houve ataques a escolas confirmados pelas autoridades; a suspensão de aulas foi medida preventiva adotada por escolas, universidades e institutos; e a apreensão coletiva foi potencializada por fake news, segundo a própria Secretaria de Segurança. Portanto, separar acontecimento de boato é condição de política pública: comunicação unificada e verificável; inteligência digital (OSINT, análise de redes, limitação de reencaminhamentos em crise); presença estatal contínua em áreas vulneráveis; e letramento midiático de base comunitária. Sem isso, a cidade oscila entre picos de pânico e gestos de exceção — alto custo social, baixo ganho de segurança.
- Paulo Henrique Matos de Jesus; Doutor em História; pesquisador em História Social do Crime, Aparatos de Policiamento e Segurança Pública; Analista Técnico do Observatório da Criminalidade da Associação dos Delegados do Estado do Maranhão (ADEPOL-MA)
