sexta-feira, 7 novembro, 2025

Um diálogo que em termos de segurança pública jamais deve ser ignorado

Paulo Henrique Matos de Jesus*

 

Jacqueline Muniz, antropóloga e professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e profunda conhecedora dos problemas e da complexidade que envolvem o tema no Brasil, sofreu semana passada inúmeros ataques desqualificadores de sua competência. No cerne dos ataques está a velha e falsa concepção de que a gestão e produção do conhecimento segurança pública é monopólio das forças de segurança pública e do Direito.

A diferença entre os saberes de um/a especialista em segurança pública e os de um/a policial de linha de frente não é um duelo entre “teoria” e “prática”. São modos distintos — e necessários — de se relacionar com o real. Hegel, ao discutir a “Certeza Sensível” na obra Fenomenologia do Espírito, mostra que o conhecimento que se pretende imediato — o “isto, aqui e agora” — é o mais pobre exatamente por carecer de mediação: mal é enunciado, já mudou. O que estabiliza a experiência não é a sensação, mas o trabalho conceitual que compara, generaliza, corrige e devolve à experiência um quadro inteligível.

O policial opera sob a pressão do instante. Lê microgestos, silêncios, a geografia miúda do bairro, memórias de ocorrências; toma decisões onde o relógio e o risco não perdoam hesitações. É um saber corporificado, treinado, que se aproxima da “certeza sensível” hegeliana: captar o que “está acontecendo” antes que as palavras cheguem. Justamente por isso, é um saber vulnerável à ilusão do imediato: a exceção vira regra, o padrão local ganha estatuto de lei geral, uma esquina às 23h “explica” a cidade inteira. Sem mediação, a intuição endurece como doutrina.

O saber acadêmico caminha na direção oposta: impõe mediações para que a torrente do singular faça sentido. Séries históricas, desenhos institucionais, estudos de letalidade e vitimização, avaliação de políticas e doutrina de uso progressivo da força transformam ocorrências em padrões, casos em tipos, impressões em evidências. Ao universalizar, esse saber não “descola da rua”: ele constrói a linguagem que permite distinguir ruído de sinal, coincidência de causalidade, eficácia operacional de custo social e jurídico.

Tomados isoladamente, ambos tropeçam: a rua sem análise tende a absolutizar heurísticas locais; a análise sem rua higieniza o real até que ele se desmanche ao primeiro choque. A lição hegeliana é dialética: não há conhecimento sem a passagem pelo sensível, mas o sensível só vira conhecimento quando atravessado por mediações — e quando retorna ao terreno para ser testado e corrigido. Em segurança pública, isso se materializa em protocolos nascidos de casos reais, *debriefings* que transformam erro em aprendizado, indicadores que reorientam rotinas, e canais nos quais patrulhas devolvem às áreas técnicas a textura do território.

É nesse ponto que entram os ataques desqualificadores às especialistas que criticaram a malfadada operação da semana passada. O repertório é conhecido: “teóricos de gabinete”, “não sabem o que é a rua”, “defendem bandidos”, “politizam a segurança”. Essas investidas não são mero destempero retórico; cumprem função política. Ao absolutizar a “certeza sensível” do instante como única medida legítima do real, interditam a mediação — justamente o que permitiria avaliar o que deu errado, por que deu errado e como não repetir. Convertem crítica técnica em afronta pessoal, deslocam a conversa do campo dos argumentos para o da honra, e desativam o circuito institucional de aprendizado.

Hegel ajuda a entender o mecanismo: quando o “isto-agora” é tomado como verdade por si, qualquer mediação aparece como traição da realidade. A desqualificação da crítica funciona como um curto-circuito cognitivo: poupa a organização de encarar evidências (proporcionalidade, legalidade, custo humano, eficácia real) e preserva o conforto da narrativa de exceção (“não havia alternativa”). Nesse ambiente, conceitos que serviriam para corrigir a experiência — accountability, dano evitado, controle externo, gestão por resultados com direitos — passam a ser vistos como obstáculos. A política pública desliza do governo por regras para o governo pelo caso.

Do ponto de vista historiográfico e sociológico, isso não é novo. Corporações tendem a proteger rotinas e identidades profissionais, especialmente sob ataque externo; ao mesmo tempo, esferas públicas saudáveis precisam de especialistas que tragam gramáticas de justificação e limites à ação coercitiva do Estado. Quando o debate degrada em ad hominem, a sociedade perde dois bens: a experiência situada de quem decide no calor do momento e a capacidade de mediação de quem compara temporalidades, mensura efeitos colaterais e recomenda correções.

Saídas institucionais existem — e dependem justamente de recompor a circulação entre experiência e conceito. Primeiro, proteger as condições de fala qualificada: transparência de dados, auditorias independentes, integridade de cenas de crime e de registros operacionais, e ambientes de “revisão pós-ação em que a crítica técnica não seja confundida com deslealdade. Segundo, integrar formações: módulos táticos associados a ética, direitos e análise de dados, com estudos de caso locais e simulações que reconstituem a pressão do erro. Terceiro, ajustar incentivos de comando: metas que valorizem redução de danos, qualidade de abordagem e confiança pública, não apenas “produtividade” numérica.

Há também um critério simples para o debate público: contestar argumentos com argumentos. É legítimo discordar da análise de uma especialista; é deletério silenciá-la por meio de rótulos. Quando a crítica é recebida como ameaça, o sistema aprende menos e repete mais. Quando é tomada como insumo, o saber operacional se refina e a política se humaniza. Em termos hegelianos, o conceito retorna à singularidade como orientação viva, não como camisa de força.

No fim, a diferença entre a especialista e o policial de linha de frente não hierarquiza valor; organiza funções. Um sem o outro produz cegueira: ou o improviso que se crê regra, ou a regra que não sobrevive ao improviso. O que salva vidas e sustenta direitos é o circuito intacto entre a “certeza” do instante e a paciência da mediação — e esse circuito depende de um ambiente que não desqualifique quem aponta falhas, sobretudo após operações que fracassam. A crítica competente não enfraquece a segurança pública; ela é o seu mecanismo de crescimento.

 

  • Paulo Henrique Matos de Jesus; Doutor em História; pesquisador em História Social do Crime, Aparatos de Policiamento e Segurança Pública; Analista Técnico do Observatório da Criminalidade da Associação dos Delegados do Estado do Maranhão (ADEPOL-MA)
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